quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Resenha: Murphy´s World

 


Origem

Ainda lembro quando me deparei pela primeira vez com esse tomo, numa resenha da Dragão Brasil número 33. Não tenho saudosismo dessa época, veja bem, pois não havia a menor chance de eu colocar as mãos nesse livro. Hoje em dia sim, ele faz parte da minha coleção particular e é uma verdadeira obra-prima. Lançado em janeiro de 1995 e escrito por dois entusiastas: Kevin Davies e David Brown, Murphy´s World fez certo barulho na GenCon de 96, com direito a stand com seus autores autografando exemplares (o meu inclusive, é assinado por eles). Kevin e David eram grandes amigos e compartilhavam o mesmo humor non-sense e crítico adquirido graças ao grupo Monty Python e a genial série literária de Douglas Adams. Eles simplesmente sentiam falta desse tom despretensioso e satírico em suas campanhas tradicionais de RPG, onde todo mundo era taciturno, misterioso e sério demais, como contam na introdução. Pra isso, desenvolveram um “ambiente seguro” para tal experimento. Surgia Murphy´s World, que tem três objetivos: funcionar como cenário sandbox para aventuras non-sense, trazer inúmeras ferramentas para tal e rodar como um jogo fechado também. O primeiro objetivo é simples: transportar seu jogo tradicional, temporariamente (ou não...) para um mundo fantástico regido pelas famosas Leis de Murphy, ou seja, "Qualquer coisa que possa ocorrer mal, ocorrerá mal, no pior momento possível". (Recomendo ler a entrada da wiki para o assunto NESSE LINK.) Logo, se não estiver a fim de aprender um novo conjunto de regras, use a tabela de conversão de atributos e valores e use o livro apenas como guia de cenário: 152 páginas com quase 90% de material descritivo e um ótimo e hilário texto.

O cenário 

Sean Murphy é a pessoa
mais famosa dos reinos.
Se encontrá-lo, fuja!

Bem, Murphy's World é o mundo de Faerie, alguns chamam de Reino das Fadas, Terra dos Mitos e de Lendas , ou seja, aquele lugar do folclore popular e dos sonhos (com uma pitada de cultura pop). Tudo começou quando o azarento explorador Sean Murphy caiu com sua nave aqui e reivindicou o planeta, acreditando que ia ficar muito rico. Bom, ele não sabia de um monte de coisa, inclusive que aqui, a crença cria a realidade e, como resultado, a realidade é totalmente fragmentada. O verdadeiro culpado disso é o sol do planeta, Ludo. As estranhas energias com as quais este orbe âmbar ataca o pequeno planeta efetivamente jogam qualquer senso de previsibilidade das leis naturais ou forças sobrenaturais para fora da janela metafísica. Ele desconhecia também a complexa e extensa rede de portais interdimensionais defeituosos (através dos quais muitos dos habitantes chegaram a contragosto), conectando o agora batizado Mundo de Murphy a quase todos os lugares do Multiverso. Assim, muitos residentes do planeta são imigrantes alienígenas relutantes. Os recém-chegados podem aparecer (para dentro, para baixo ou lateralmente) em qualquer lugar: confusos, até envergonhados e pensando em como voltar pra casa. O que pode nunca vir a acontecer... 

Apenas uma parte do mundo.
Muitas regiões são deixadas em branco pro Mestre desenvolver. 


Essa estrutura funciona justamente para você incluir qualquer tipo de elemento ou personagem no jogo. Mas o jogo traz toda uma gama de raças nativas. A saber: Elfos, Anões, Brownies, Gigantes, Trolls, Ogros, Pixies, Technocratas, Celestiais, Rakshasas, Nagas, Poughvidds, Reagombies e claro, Humanos. Na verdade, elas são mais bem-trabalhadas e detalhadas que muito RPG sério por aí. Algumas das raças possuem sátiras políticas e sociais, inclusive. Nem de direita e nem de esquerda, os autores alfinetam estereótipos de ambas as alas. Com direito aos Reagombie (paródia com conservadores da Era Reagan com seus lindos lares, carros e crianças aprumadas que não falam palavrão e procuram comunistas em todos os cantos). Eles acreditaram tanto nas maravilhas da energia atômica, que de aparência, se tornaram zumbis semelhantes aos Ghouls da franquia Fallout). Do outro lado, temos os Trolls que visam uma conscientização social das outras raças, abraçam árvores e cheiram polén em clareiras escondidas. Suas esposas, acham os homens um estorvo, não se depilam e se recusam a usar desodorantes artificiais (apesar de ainda não terem encontrado um natural como substituto). Os elfos possuem suas facetas sérias e aristocráticas, mas possuem ramificações que eles diriam ser no mínimo, inconvenientes. Por exemplo, os gandharva que abandonaram a melancolia élfica para viver em constantes raves na praia, com muito surf e bebidas caras. Não suportam tarefas domésticas e podem chegar a brigas sérias quando chega a hora de alguém ter que lavar a louça. Mais cedo ou mais tarde, a alegria exagerada deles irá irritar os personagens ou mesmo, os jogadores. Pode acreditar. 


Não poderia deixar de mencionar a raça mais bizarra do livro que são os Poughvidds, uma raça que mantém uma postura séria e sóbria, mas que podem colapsar e morrer se começar a rir demais. A causa pode ser algo dito ou algo visto, que simplesmente vai exigir um teste de Força de Vontade (ou atributo similar, no caso de outros sistemas)... Ou seja, exigirá autocontrole do jogador que estiver usando um membro dessa raça e do Mestre (no caso de um NPC). Como mencionei, daria um post só pra falar das raças, pois elas são muito detalhadas, mostrando cultura, visão política e religiosa, tabela de nomes comuns, habilidades, entre outras informações.

O sistema

Como é dito na introdução do capitulo 3: “Suas regras, nossas regras ou nenhuma regra!” Em relação a dados, você precisará apenas de d6 e d10 (um par de cada). A Tabela de Conversão permite traduzir os atributos e valores de um sistema para outro. Trazer seus personagens para o “sistema da casa”, ou mesmo ajudar a converter de um sistema para outro. O livro ainda apresenta outras opções, algumas bem à frente de seu tempo, permitindo até mesmo jogar sem dados: apenas como interação verbal e se divertir contando uma história engraçada. Em paralelo, traz ainda uma mecânica de Resolução Simples, bastando jogar 1d10 (que pode ter bônus ou penalidades situacionais), sendo 1 (sucesso estrondoso), 2-5 (sucesso), 6-9 (falha) e 10 (falha crítica) e o para os mais tradicionais, o sistema próprio, que baseia-se em jogar 2d10 e tentar tirar menos que o valor percentual definido pela Tabela de Ação/Resistencia (página 70). Digamos que eu tenha Força 6 e estou puxando um pesado baú de tesouro. O Mestre definiu a tarefa como “Fácil”. Cruzando minha Força 6 (fraco) com a Dificuldade Fácil na tabela, acho o valor 29. Tenho que tirar menos ou igual no d100 (o primeiro d10 para dezenas o segundo para unidade). Se alguém me ajudasse, daria um SHIFT positivo na tabela para “Muito Fácil” por exemplo. Quem jogou RPG nos anos 90 sabe o que é o termo SHIFT, que é simplesmente você andar na tabela. Esse ajuste pode ser positivo ou negativo e essa mecânica dominou o cenário nessa época, onde quase todos os RPGs possuíam tabelas. 

A Tabela de Conversão
A Tabela de Conversão

Por fim, vai depender se você visa uma proposta mais “contador de história” usando o cenário proposto, simplificada (ou até narrativista se você trabalhar conceitos como falha parcial ou sucesso parcial no método da Resolução Simples) ou mais tradicional (leia-se, mais próxima dos sistemas da época). Independente da sua escolha, faça cada jogador rolar na tabela de Traço de Personalidade (página 66) para sortear algo único e que provavelmente vai acarretar cenas memoráveis durante o jogo. Exemplo de resultados: 57 (medo de atividades eróticas), 53 (medo de peixes), 97 (sonambulo), 48 (medo de pássaros), 16 (sempre confia nas pessoas), jogue 1d100 e seja feliz! Ponto alto para as tabelas de Falha Crítica, onde uma revoada de pássaros pode cagar na sua cabeça, ou você se torna insanamente empático e passa a visar o bem do seu inimigo, ou pasmem, sua arma escorregar pra mão dele...lol. Ponto alto para o resultado 97-99 onde surge o filho do inimigo agarrando sua perna e implorando para não matar seu pai/mãe. As batalhas tendem a ser caóticas, no mínimo!

Ferramentas do Absurdo

O capitulo 4 é todo voltado para ajudar o Mestre a criar uma aventura no tom certo. O livro traz um artifício bem interessante que é definir o tema da aventura simplesmente abrindo uma página aleatória e lendo a nota de rodapé da página à direita. Você leu certo: cada uma das páginas ímpares traz uma percepção das Leis de Murphy que simplesmente te inspiram como Mestre para criar uma trama tendo essa lei como base. Abri enquanto escrevo esse post, na página 77 por exemplo. Ali diz: “Se tudo parece certo, é porque tem algo errado...”. Isso é genial. Pode ser o mote da sessão de jogo até! Se o grupo precisa atravessar um deserto, coloque bebedouros e lenços umedecidos a cada 50 metros. Alguém vai começar a desconfiar disso. “Não é possível, isso está fácil demais.” Até descobrirem lá na frente que o bebedouro estava envenenado ou que era um serviço VIP de alguma empresa, e por eles terem bebido em todos eles e usado os lenços premium, o grupo está devendo 300.000 peças de ouro, ou os Cavaleiros Obtusos irão atrás deles hoje mesmo! Muitas tabelas no livro ajudam a criar coisas caóticas do nada. Bastando rolar o dado e gritar! Magia e tecnologia também são tratadas da mesma forma. Elas podem falhar (e provavelmente irão) quando mais precisar. Magos transportados para Murphy´s World irão descobrir que suas magias funcionam de maneira completamente diferente. O capitulo 5 é focado nisso, com direito a tabelas de falhas críticas para magia. Alguns efeitos podem ser bons, outros terríveis.

Chuva de poliedros são bem perigosas!

Conclusão

Murphy´s World tem uma linda arte e uma eficiente diagramação apesar das tabelas frutos dos jogos noventistas. Ainda assim é um jogo incrível que vale a pena experimentar até hoje. Ou pelo menos uma lida, o quê lhe garantirá boas risadas. Anos atrás, resenhei o Men in Black RPG e sempre falo isso quando abordo jogos de comédia: você tem que estar com o grupo certo, onde tenha liberdade de fazer piadas e que conheça o senso de humor dos envolvidos. Além disso, a comédia tem que ser natural. Não adianta forçar pois essa é a receita do fracasso ou de situações de vergonha alheia. O segredo é relaxar: se numa sessão tradicional de D&D, o humor já vem natural, oriundo de uma frase dúbia, ou uma frase fora de contexto, ou de uma situação absurda, pode ficar tranquilo que o mesmo acontecerá ao jogar/mestrar Murphy´s World. A diferença é que quando essa oportunidade surgir, você irá fisga-la e botar “mais fermento”: a famosa regra do “sim” no teatro de improviso. Pode ser que se empolgue com o cenário e não queira aprender outro sistema. Olhe para sua coleção de RPGs e pense em alguns sistemas que se sente confortável mestrando/jogando. Pessoalmente já usei o sistema proposto pelo livro e até mesmo numa aventura de AD&D, onde o grupo tinha que impedir um casamento da realeza, com os drows albinos do cenário como vilões (são albinos justamente porque não pegam sol, ora bolas!). Murphy´s World é uma boa pedida quando você terminar uma campanha longa. Antes de ir para outro “jogo sério”, talvez. Ou uma one-shot descomprometida nas férias. Quem sabe o seu grupo de D&D 5ª edição adormeceu e sonhou uma aventura por lá? Quem sabe, seu grupo de Planescape, entrou no portal errado? Quem sabe seus estoicos e honrados cavaleiros de Pendragon entraram numa caverna e saíram no meio de um embuste entre Pixies? Aguarde algo digno de Monty Python e o Cálice Sagado! Enfim, bem-vindo ao Mundo de Murphy.

Sim ou claro?

A Lady of Pain vai ter trabalho com essa galera...


Abraço a todos e bons jogos!    

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