sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

A Síndrome do Stormtrooper (ou, Fazendo um re-skin)

 

Eles são diferentes, mas são iguais...

Oriundo das áreas de games eletrônicos, o termo re-skin (“revestir”, numa tradução mais acurada), significa, na prática, você alterar um item previamente programado, mas apenas em sua estética. Logo, vamos dizer que você tem uma pistola da Confederação Humana que tem dano X e alcance Y por exemplo, e você vai desenvolver uma arma equivalente para sua raça inimiga, você deixa a programação original da arma, mas muda a sua estética para se adequar ao outro povo. Uma pistola de revestida de queratina para um povo insetóide, por exemplo. Fiz todo um novo design, mas copiei e colei a programação. Pronto! O mesmo, pode ser feito com qualquer outra coisa: veículos, cenários, NPCs, quests, etc. No RPG de mesa, o re-skin é muito bem-vindo também, e certamente garante as mesmas vantagens que o seu análogo eletrônico: fazer o programador (Mestre de Jogo) ganhar tempo, poupando assim, trabalho e retrabalho. Na verdade, quando bem executado, é um processo quase invisível, ou seja, muitas vezes, o jogador nem percebe! 

Pra deixar bem claro agora, essa prática é o que eu chamo de "Síndrome do Stormtrooper". A saber, ao longo da franquia Star Wars, há troopers para florestas, para ambientes aquáticos, snowtroopers e "trocentas" outras variações. Em termos de regra, provavelmente eles serão mecanicamente idênticos. Claro que posso colocar algum diferencial entre eles, até mesmo para quebrar a expectativa em dado momento. Mas em suma, não há necessidade de queimar a cabeça e gastar tempo precioso, montando a ficha de cada um desses sub-tipos. Se você tiver tempo e disposição pra tal, beleza, vá em frente! Eu infelizmente, não tenho. E torna-se um recurso útil nas situações on the fly (como dizem os americanos), onde você precisa sacar as mecânicas de um NPC ou criatura rapidamente. No mais, tal prática pode ser feita, obviamente, com qualquer sistema e cenário que imaginar. Entretanto, quanto mais simples (ou abstrato) for o sistema que joga, mais fácil será esse processo. Isso eu te garanto! 

Lembro lá nos anos 90, que um amigo meu com pouca grana, não tinha o livro básico de Vampiro: A Máscara, que era um livro bem caro mesmo (dado o preço proporcional e ajustado da época). Daí ele me disse que estava jogando Vampiro, mas com o Manual Vermelho do 3D&T. De início, eu ri, achando que era alguma piada, mas ele pacientemente, me explicou. As vantagens com tom sobrenatural, eram os poderes: com "Aceleração" fazendo o papel de Rapidez por exemplo, "Ataque Especial" para efeitos de Potência, "Invisibilidade" para efeitos de Ofuscação, etc. Tudo isso, sem ter que mexer em nada no sistema: só trabalhando com o re-skin dessas habilidades. Eu achei genial, depois de refletir com calma. Nessa época, eu tinha bastante preconceito com esse tipo de coisa, se eu fosse jogar um RPG de Star Wars, tinha que ser com o livro oficial ou montar uma adaptação coesa e ilustrada com a temática ou simplesmente não funcionaria pra mim. Hoje vejo o quão libertadora pode ser essa mentalidade do re-skin.

Vocês avistam, lá embaixo, um stormtrooper.
Só que ele é amarelo...

Depois desse episódio, jogando AD&D, com jogadores já veteranos, que conheciam as criaturas de A a Z no Livro dos Monstros, (e olha que era um desafio com aquele livrão de quase 400 páginas!), eu simplesmente pegava uma criatura e mudava inteiramente sua descrição. Isso causava um choque mental imediato (Putz, não lembro dessa criatura no livro! Você que inventou esse monstro? – eles indagavam). “Sim, sim, claro!” – eu respondia, disfarçando o riso. Quando na verdade, estavam enfrentando apenas um dos dinossauros da página 54 do livro. Simples assim. Depois disso, fiz muitos exercícios de criatividade com esse recurso. De cabeça,  lembro uma campanha de Yu Yu Hakusho utilizando apenas o Street Fighter RPG e outra de Final Fantasy usando 3D&T. Na verdade, pensando agora, sistemas genéricos como esse último e GURPS geralmente já treinam o Mestre a pensar bastante "fora da caixa". Re-skin não é uma prática que "assusta" a galera que vem desses jogos, pelo menos na minha percepção. 

Por fim, a Síndrome de Stormtrooper, é apenas uma ferramenta para você ter no seu leque de opções como Mestre. Serve para ganhar tempo e otimizar esforços, quem sabe gastar mais energia na composição da trama da campanha, e agilizar a parte mecânica. Nada errado com quem gosta de dedicar muito tempo nesse aspecto, mas nunca foi o foco principal nas minhas mesas. No final do dia, se eu preciso de uma estranha criatura que rasteja pelo pântano, não tenho nenhum problema em pegar o bloco de estatística de um crocodilo para exercer tal papel.   

Abraço a todos e bons jogos!

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Resenha: Lamentations of the Flame Princess


Essa resenha está bem atrasada, eu sei. Já resenhei inúmeros suplementos do Lamentations aqui no blog, mas nunca o livro básico! Bom, antes tarde do que nunca! Eu adquiri o livro básico de Lamentations of the Flame Princess anos atrás. Já estava acompanhando o movimento OSR e vendo várias propostas de sistemas e jogos que tentavam emular versões antigas de D&D. Alguns RPGs faziam isso com pouco estilo ou de maneira genérica, outros já faziam com mais identidade e geralmente com um twist que de fato, me fisgava. DCC e Lamentations lideram nesses quesitos, na minha opinião.

Idealizado por James Edward Raggi IV, um entusiasta americano do hobby, que hoje reside na Finlândia, o jogo originalmente foi criado em 2009, formatado num box com tiragem limitada. O chassi do sistema, a saber, é tutelado pelas normas da famigerada OGL, mas novamente com alguns twists que irei pontuar abaixo. Com o sucesso, ele lançou em 2013, uma versão revisada formatada em um A5 capa-dura (que ilustra esse post). O apelo do jogo era justamente o weird fantasy, apesar dele não trazer nenhum cenário base. O que eu gosto bastaste, dando brecha para você criar o seu próprio, adaptar o seu favorito ou pegar alguma das ambientações que saíram oficialmente sob o selo de Raggi, o metaleiro. Falando em metal, toda a arte do livro (desde a capa), parecem CDs noventistas de heavy metal, speed metal, black metal, doom metal e aquelas barulheiras que eu não parava de escutar trancado no quarto. Mãe, te amo!

Juro que tem um halfling
nessa imagem! 


Apesar do núcleo do sistema ser reconhecidamente o B/X clássico e ter raças como classes, os seis atributos famosos de D&D e a estruturação vanciana de magia, o jogo tem muitos diferenciais simples e elegantes, o que faz realmente o sistema dar um passo adiante no que já é familiar para veteranos. A Categoria de Armadura é ascendente, ok? As resistências foram repensadas, mas a mecânica é a mesma das versões antigas do nosso querido D&D. A divisão Paralyze/Poison/Breath/Device/Magic faz mais sentido do que vimos até o AD&D 2ª edição, por exemplo. Essa “vaca sagrada” só foi reformulada na 3ª edição, como sabemos. Outra boa sacada é a classe do Especialista que substitui por completo, a classe do ladrão. De maneira simples, o que vai diferenciar e tornar seu Especialista único, é a forma ao qual você DISTRIBUI seus pontos de perícia. Quer ter uma pegada de ranger? Coloque pontos em Bushcraft, Stealth, etc. Quer um assassino, invista seus pontos de Sneak Attack. Quer um carinha digno de Lankhmar? Capriche no Sleight of hands e Climb. Se você já está torcendo o nariz, achando que o sistema de perícia é como o visto no D20 em geral, fique calmo. Aqui a lista foi enxuta para 9 itens e possui um mini-sistema. Todas vão de 1-6. Para ter êxito, basta lançar 1d6 e tirar menor ou igual ao valor alocado. A saber, todas as skills do Especialista começam em 1 e você tem 4 pontos para distribuir livremente. O sistema de carga também é um diferencial, trocando a matemática de ficar somando item por item para uma que beira ao abstrato: você tem uma lista atrás da ficha de itens que vai sendo preenchida. Quanto mais itens, mais penal você vai recebendo. Simples assim.

Ponto alto para o Guerreiro, Anão e o Elfo, que podem trocar suas posturas de combate. Esqueça Feats e Habilidades de Classe: no início de um embate você pode oscilar entre postura Padrão, de Esquiva, Investida ou Defensiva. Cada uma delas com bônus e penalidades relevantes. Uma maneira elegante de tornar o combate mais estratégico e recompensando o próprio estilo do jogador, sem se render a qualquer mecânica de talentos ou pontos de qualquer coisa. Basta pintar na ficha, a postura adotada pelo personagem naquela rodada.

A magia é esquisita e poderosa, mas não envolve tabelas gigantes como no DCC (que apesar de adorar, intimida muita gente, confesso). Sendo assim, as magias são esquisitas em sua descrição e efeitos, destaque para Summon, que é um show à parte. Se nas versões mais light de D&D, o mago invoca confortavelmente uma criatura pra ajudá-lo, aqui é uma equação nefasta e caótica, onde o personagem não sabe exatamente o que ele vai puxar de outra dimensão. Os poderes e habilidades desse ser, serão definidos aleatoriamente nas tabelas. Agora: invocar é uma coisa, controlar é outra, certo? Boa sorte nesse teste de Controle da Entidade, explicado na página 137 do livro!

O livro ainda traz três regras bem-vindas: regras pra propriedades e gerenciamento de finanças, regras para Serviçais e regras para armas de fogo. A primeira ajuda a gerir grandes fortunas obtidas eventualmente e dar um senso de aposentadoria para o personagem (como a Rules Cyclopedia fez no passado), os Serviçais podem ajudar os personagens nas aventuras e ajudar a gerir seus empreendimentos (templos, fortalezas, guildas, laboratórios, etc) e por fim, armas de fogo, CASO elas existirem no seu cenário, óbvio. Como o jogo originalmente foi pensado também para cenários históricos (originalmente o cenário oficial seria a Europa do século 17), elas estão lá, marcando presença literalmente no Apêndice do livro. Ou seja, inteiramente opcionais. 

E não poderíamos falar de Lamentations sem falar dos seus incríveis cenários/ suplementos. Bom, você está cansado de matar orc, goblin e troll? Experimente jogar em Carcosa, terra do Rei de Amarelo e lar de muitos povos bizarros, experimente ficar no meio de uma sinistra e surreal guerra fria entre a Condessa de Sangue e um Lorde Vampírico em A Red & Pleasant Land. Visite a soturna e vertiginosa cidade de Vornheim. Explore Isle of the Unknown repleta de criaturas e entidades estranhas. Ou quem sabe, adentrar tuneis intermináveis e conhecer a escuridão viva de Veins of the Earth. Já ouviu falar da terra congelada e impiedosa de Frostbitten & Mutilated? É simplesmente impossível não se inspirar com os suplementos de Lotfp! Lembrando que todos eles (inclusive as aventuras) podem ser facilmente adaptadas para sua edição favorita de D&D!

Pretendo ser enterrado com esses livros!
Conclusão

Eu já joguei Lamentations usando Ravenloft como cenário (cheguei a reportar AQUI) e o jogo foi incrível. Também já conduzi uma aventura de 3 sessões usando Lankhmar como cidade-cenário e o jogo foi incrível também. Atualmente, estou montando uma campanha de The Keep on the Borderlands usando esse incrível livrinho e estou bem empolgado de revisitar o Forte sob uma visão sombria! A saber, o livro está disponível gratuitamente em uma versão sem ilustrações NESSE LINK e até na Amazon brasileira NESSE LINK para a versão física do jogo. Altamente indicado para fãs de jogos com pegada old school e dark fantasy. Recomendadíssimo! 

Abraço a todos e bons jogos!