sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Em defesa do D&D 4ª edição

 


Quem acompanha esse blog, sabe que eu jogo todas as edições, gosto de todas e coleciono todas, na verdade. Minha visão, é que há propostas e cenários melhores para cada uma delas. Simples assim. Não existe uma melhor ou pior, apenas o gosto pessoal e experiências pessoais com cada uma delas. A segunda edição do AD&D, por exemplo, está diretamente vinculada à minha nostalgia (vivi e consumi RPG nos anos 90) e às caixas de cenários de campanha (minhas referências de texto e arte até hoje), entretanto, gosto da customização extensa da 3ª edição, da estética e proposta pulp do AD&D 1st edition e até da estética limpa e aventuresca, bem “Caverna do Dragão” da Rules Cyclopedia. E obviamente, o que é nostálgico pra mim, pode não ser pra você. Mas não vamos perder o foco aqui. Essa introdução está aqui justamente pra evitar retomar as Edition Wars que pipocavam nos blogs e fóruns anos atrás. Voltemos à época de lançamento da 4ª edição.   

A expectativa

Pra quem não lembra, a quarta edição foi muito aguardada, ou seja, os holofotes estavam voltados para ela. A 3ª edição já estava saturada, repleta de suplementos e materiais terceirizados graças a licença OGL, que da noite pro dia, infestou as prateleiras de livros com o singelo selo “D20 system”. Alguns desses materiais eram bons, outros só OK, e outros muito ruins e até polêmicos (vide a treta do Book of Erotic Fantasy). No horizonte, as primeiras informações sobre a nova edição começaram a ser liberadas em forma de encartes chamados Wizards Presents (imagem ao lado), deixando claro, os objetivos que a D&D 4ª edição tinha em mente na época:  

·    Apresentar um jogo mais atrelado às miniaturas, ou seja, com um apelo tático maior, onde o ponto exato onde um inimigo ou aliado se encontrava, faria toda a diferença.  

·   Tornar mais fácil e palpável as opções do seu personagem, ou seja, otimizar o jogo, principalmente o combate.

·       Uso de aplicativos e periféricos para gerenciar e manter seu personagem atualizado.

·    Mexer em algumas "vacas sagradas" do jogo a fim de deixar a ficha do personagem mais interligada, sem "sub-sistemas" para Atributos, Pericias, Resistências, etc...coisa comum nas edições anteriores.

·     Os personagens são muito heróicos, desde o primeiro nível. Evitando assim, o grupo a tombar toda hora e evitar TPKs (total party kill), que eram mais constantes nas outras edições. Deixando a proposta "jovem da vila com espada do pai" ou "criador de vacas com ancinho" definitivamente, para trás. 

Bom, se você é um fã de D&D, não é novidade que o RPG surgiu com um jogo de miniaturas: o Chainmail. Logo, o D&D virou um nicho dentro do nicho. Na visão de seus criadores seria um passo além, mas ainda assim, vinculado a elas. Se a gente analisar os produtos da era TSR, sempre houve esforço para atrelar miniaturas à sua mesa: o First Quest vinha com mapas táticos e miniaturas de plástico, Dragon Quest, vinha com miniaturas cartonadas, de plástico e até de chumbo! Por inúmeros motivos, muitas mesas de jogo não usavam, geralmente era por falta de acesso e dinheiro mesmo (principalmente para nossa realidade aqui no Brasil). Com Vampiro: A Máscara, o conceito de “teatro da mente” ganhou ainda mais força, sendo tratado como um estilo de jogo mais “rebuscado”, todo na imaginação. A ideia aqui não é polemizar, simplesmente tem grupos que curtem miniaturas, outros não. A questão aqui é notar a mentalidade da Wizards (e respectivos designers, claro) de atrelar ainda mais o jogo às miniaturas. Por isso, vemos o “Deslocamento” dos personagens e criaturas, sendo dado em quadrados, o alcance das armas e alcance das magias, também. Tornou-se claramente uma visão da empresa, vender produtos atrelados a essa proposta: tiles, mapas, cards. Era uma visão que tentava acompanhar aquele novo tempo, onde já era possível a própria empresa, terceirizar e confeccionar suas próprias miniaturas, já era viável para o consumidor, importar miniaturas (alguém lembra do dólar baixo?), era possível fotografar suas sessões e compartilhar em redes sociais, havia a oportunidade até mesmo de integrar aplicativos e periféricos ao jogo e isso foi uma visão que talvez estivesse a frente de seu tempo, na verdade. Infelizmente, bem além do poder aquisitivo de muitos jogadores, confesso. Por fim, muitos se sentiram intimidados com essa proposta, essa é a verdade. “Putz, não tenho dinheiro para investir tanto!”, e isso é totalmente compreensivo, mas muitos fãs transformaram ressentimento em ódio gratuito, acusando a Wizards de “crocodilagem” para cima deles ou mesmo “elitizando o jogo!”, quando na verdade, era apenas uma empresa querendo pagar suas contas e ficar no azul no final do mês.

Nessa época surge também a falácia do “Vídeo game de papel” – “Ain, mas D&D 4ª edição é muito World of Warcraft!”. Bom, eu estava lá quando a 3ª edição foi lançada, e escutei muito essa frase nos meus círculos: “Ain, mas o D&D 3ª edição está muito Diablo”. E adivinha: quando a 2ª edição saiu, muitos reclamaram também, pois o jogo estava mais colorido e family friendly (sem termos como diabos e demônios, sem a raça do meio-orc e a classe de Assassino, para não assustar a mamãe e o papai.). Ou seja, sempre haverá haters, em qualquer edição. No final, o combate da 4ª edição é um dos mais divertidos e estratégicos que possa imaginar. Poderes e habilidades que deslocam aliados, você ou seus inimigos. Seja para flanquear (ou sair de uma posição desvantajosa), seja para sair de terrenos difíceis (ou colocar inimigos lá), para ficar acima deles, ou seja, buscar vantagens táticas. Outras habilidades, permitem você marcar um aliado ou inimigo para dar certos bônus e penalidades ou aplicar determinado efeito. Além disso, o D&D 4ª edição tem um combate muito mais veloz do que a 3ª (isso se torna mais verdadeiro em níveis altos). Pra isso também, é imperativo que todos os jogadores conheçam seus poderes e que antes de chegar no seu turno, já tenha uma noção do que o personagem pretende fazer. Além disso, muitos Mestres não entendiam e/ou não usavam o conceito de Minion. Esses capangas agilizam muito o jogo. Qualquer criatura pode ser um minion e elas podem estar presentes em qualquer nível do jogo. Você pode estar entrando numa guilda de ladrões e encontrar o líder protegido por 6 capangas. Ou pode entrar num covil de goblins e ficar cercado de minions goblins. A questão mecânica aqui é que minions, possuem apenas 1 ponto de vida, só que apenas ataques que ACERTAM causam dano. Isso faz sentido pois existem poderes e habilidades que causam dano mesmo que erre, mostrando que houve certo esforço do inimigo para evitar o golpe. Além disso, minions causam dano FIXO, ou seja, sempre que acertam, causam vamos dizer, 8 de dano. Isso os torna bastante perigosos. Minions de níveis mais altos, causam dano fixo mais alto, entretanto, continuam tendo 1 de vida. Se a teoria não ficou clara, recomendo testar na prática. Agiliza demais o jogo e torna cinematográfico, pois você verá os PCs visando os minions primeiro, e só depois, o boss.       

Talvez o Game Days tenham sua parcela de culpa...

Entretanto, temos que ser justos e há um fator que realmente reforçou essa percepção errônea de videogame dos jogadores: que era o evento D&D Encounters/D&D Gameday. Eram eventos de divulgação do jogo, mas que se resumiam a miniaturas, mapas e a descrição de um encontro a ser vencido. Isso deixava o jogo de fato com muita cara de boardgame, o que fazia alguns fãs puristas “torcerem o nariz”. No mais, qualquer frase nesse sentido geralmente é só repetição infundada ou simplesmente a famigerada Falácia do Espantalho.   

Outras mecânicas

Na 4ª edição, tudo se resumia a uma jogada de ataque usando o D20 e adicionando respectivo modificador. O que diferenciava, era o alvo. Isso gera uma mecânica simplificada e mais consistente. Curiosidade: até Dardos Místicos exige um teste de ataque nessa edição (ERRATA: um leitor do blog me explicou que "Dardos Místicos", tempos depois, sofreu uma alteração na mecânica, garantindo o acerto automático que deixou essa magia famosa. BAIXE AQUI pra conferir). Enfim, não importa se você está batendo com uma espada ou disparando uma bola de fogo, você sempre faz jogadas de ataque. Esta é uma grande mudança das edições anteriores, onde os feitiços exigiam que os alvos fizessem testes de resistência específicos, enquanto atacantes (corpo a corpo ou a distância) rolavam ataques contra uma Categoria de Armadura (CA) estática do defensor. Logo, na 4ª edição, se está difícil acertar a CA de um oponente, o grupo mudava a tática, visando ou o Reflexo, a Fortitude ou a Vontade do alvo. Como se o grupo buscasse de fato, um ponto franco em seu oponente. Isso foi tão inegavelmente acertado, que mantiveram, em certo nível, na 5ª edição, onde você pode visar Resistências atreladas diretamente a cada um dos seis atributos.  

O Pulso de Cura foi polêmico também, mas ele está ligado a outra vaca sagrada: o clérigo, que nas outras edições, ficava de prontidão como uma ambulância. Se alguém do grupo era ferido, escutava-se de imediato o grito: “Médico!” – como um filme da 2ª Guerra Mundial. O Pulso de Cura liberava o Clérigo desse fardo, dando-lhe liberdade no combate para criar meios para que os seus aliados simplesmente NÃO tombassem, tendo ainda em seu repertório, poderes que afetavam um inimigo, mas que ao mesmo tempo ajudava seus aliados. A saber, a 5ª edição também faz isso, mas mudaram o nome para Short Rest para não “triggar” os haters de plantão...

“O guerreiro tem poderes também?” – Bem, deixe-me explicar: Poderes (que podem ser classificados como at will, por encontro ou diários) são feitos sobrenaturais ou não, que traduzem toda a expertise do seu personagem. São proezas que o diferem de outras pessoas no mundo. Logo, o guerreiro é capaz de causar ataques que pegam em dois alvos por exemplo, outro que empurra o adversário, outro que derruba. Isso tudo são “poderes”. Eram literalmente cartas na manga que o jogador tinha para evitar chegar na sua vez e ele simplesmente falar:”Ah, meu turno agora? Eu ataco!” – esses poderes marciais, faziam ele ficar atento ao combate. Se o bardo conseguiu deixar o ogro perto de um abismo, ele rapidamente se lembrava do poder que ele tinha para acertar o ogro e empurrar o alvo 2 quadrados, ou seja, para o abismo. Combinar esses poderes entre a equipe, era extremamente recompensador! Essa mentalidade de classificação de poderes também foi importada para a 5ª edição, só que disfarçada. Na edição atual, se você tem uma habilidade que só pode ser usada depois de um short rest, está dizendo basicamente que é um poder por encontro, se fala que só pode ser usada depois de um long rest, claramente é um poder diário. Uma cantrip por sua vez, nada mais é que um at will. 

“Todas as magias do mago são para usar no tabuleiro? Todas as magias do mago são de ataque!” – Eram frases que se ouvia bastante! Vamos com calma. O repertório arcano na 4ª edição simplesmente foi divido em “Poderes” e “Rituais”. Viraram Rituais, todas as magias que demoravam alguns minutos ou mesmo horas para serem executadas. Logo, você vai encontrar suas queridas “Identificar” ou “Disco Flutuante de Tenser”, lá nos Rituais. Rituais reorganizavam o conceito de componentes materiais também. Melhor até do que qualquer outra edição, na verdade. Cada ritual tem um custo de componentes: simples assim. Ao invés de ficar misturado com outras magias que nem demandavam isso, por exemplo.     

“Ain, precisa de cartinhas pra jogar!” – a 4ª edição usa o recurso de cartas para ilustrar seu leque de opções. Cada “Poder” seja, marcial, arcano, divino ou primal, deve ser preenchido na forma de carta. Isso é útil para o jogador e incrível para iniciantes, pois eles podem ler sobre os efeitos e possibilidades das habilidades do herói que ele está jogando, além de ser um gerenciamento de recurso palpável bem interessante. Conforme avança de nível, o jogador terá a chance de trocar por outros que sejam compatíveis com seu gosto e estilo de jogo.

Também escutava essa:  “Ain, mas o sistema é todo voltado pra porrada” – isso é totalmente falacioso. Já vi mesas de Ad&d só porrada, já vi mesas de D&D 3ª edição com PVP, mesas de 5ª edição com combates atrás de combate, etc. Vai variar de estilo de jogo, pra estilo de jogo. De mesa, pra mesa. A prova de que essa frase não faz sentido, é que foi na 4ª edição onde surgiram os Desafios de Perícia (página 72 do Livro do Mestre), que era uma ferramenta para justamente tornar jogadas de pericia bem mais divertidas e atreladas à situação ou cena que o seu personagem se encontrava. Até hoje, mestrando 5ª edição, uso tal ferramenta! Vamos pegar dois exemplos comuns de desafio de perícia:

Exemplo 01: A Perseguição

Um ladino de 4º nível, persegue um provável informante pelas ruas da cidade. Eu como Mestre, vou classificar Complexidade 1, pois está de madrugada, sem movimentos de mercadores e transeuntes. Logo, o jogador precisa obter 4 sucessos antes de obter 3 fracassos. Como o PC é familiarizado com a cidade (ele cresceu ali), coloco uma dificuldade Fácil (CD 8). Ele agora faz o teste de Manha para tentar alcançar seu alvo. Em minhas anotações, está definido que se ele falhar, ele perde o informante de vista. Se ele não obtiver nenhum sucesso, ele não só perdeu o cara de vista, mas foi emboscado por comparsas do alvo.

Exemplo 02: Solicitar Ajuda

Um clérigo de 1º nível, tenta convencer o seu sumo-sacerdote a fornecer ajuda para seus aliados. Vou dar uma complexidade 1 pois compartilham a mesma fé. Logo, o clérigo deve passar num teste moderado de Diplomacia (CD 10). Nas minhas anotações, se ele obtiver 3 falhas e nenhum sucesso, o sumo-sacerdote ficará ofendido com a abordagem do personagem. Se tiver 2 sucessos e 3 falhas, eu posso permitir apenas o pernoite do grupo, com má vontade. Se passar inteiramente no Desafio, o sumo-sacerdote, cederá quartos, alimentação e quem sabe, até um guia da cidade!

Qualquer coisa pode se tornar um Desafio de Perícia.
Até atravessar um corredor repleto de armadilhas!

Desafios de Perícia criavam grandes cenas de tensão na mesa. Sem brincadeira, todos se levantavam para ver o resultado final do desafio proposto e isso, meu caro, é uma regra que surgiu aqui, na 4ª edição de D&D. É possível até mesmo realizar um combate como Desafio de Perícia. Sabe aquela cena do filme onde o personagem atravessa um corredor repleto de inimigos? Basta usar a CA deles como Número-Alvo e voilá! Mas não se esqueça: dê vida aos Desafios de Perícia, fale de consequências (boas ou ruins), para evitar ser apenas mais uma jogada de dado. No final, terá um resultado bastante cinematográfico.

Entre outras tretas estavam: o avanço da timeline de Forgotten Realms em algumas centenas de anos para atender a linha de romances. Isso acarretou da noite pro dia, a morte de inúmeros personagens humanos por exemplo. Simplesmente pela expectativa de vida. Além disso, classes básicas como o Bardo, O Druida e o Bárbaro não estavam presentes no Livro do Jogador (só vieram no Livro do Jogador 2 tempos depois), o que acarretou muitas reclamações naquele primeiro momento... Pra quem estava órfão da 3a edição foi algo muito drástico. Até porquê deveriam estar querendo converter seus personagens da 3a edição para a nova... Por fim, aparentemente essa decisão estava atrelada ao design do jogo mesmo, e o segundo livro do jogador, trouxe raças/classes com a pegada primal.

Por último, a treta do Gnomo. Essa raça também não estava presente no Livro do Jogador (ele também voltou no Livro do Jogador 2), e quando inúmeros jogadores indagaram a Wizards, receberam um "Ah, mas ninguém joga com gnomo mesmo!" E isso minou mais uma vez a reputação do jogo, quando a empresa poderia ter sido mais "política" e explicar que o Gnomo e outras raças e classes estavam chegando no próximo Livro do Jogador, que teria um foco destinado a elas. Bem infeliz da parte deles, de fato... 

Conclusão

É impossível agradar a todos, e a 4ª edição repercutiu demais: para o bem ou para o mal. Alguns jogadores que ainda amavam a 3ª edição ou que tiveram problemas com o jogo ter mexido nas “vacas sagradas”, migraram para o Pathfinder (que de fato, abocanhou uma grande fatia do mercado e passou a ser chamado de D&D 3.75), outros começaram a olhar para trás, para os jogos originais que deram início ao hobby e principalmente para a sua literatura, iniciando assim, o movimento OSR. Hoje, felizmente, o D&D 4ª edição encontra-se numa posição bem confortável. A quinta edição já está mais que estabilizada e popularizada. Falar que está jogando 4ª edição, atualmente, soa como alguém dizer que está jogando a 3ª ou 2ª edição por exemplo. Claro, que você ainda vai escutar as mesmas repetições de falácias que circulavam pela blogosfera daquela época, mas geralmente são sem propriedade ou simplesmente replicações de “frases de efeito” oriundas desse mesmo período. Em tempos onde o Roll20 e outras plataformas digitais ganham força, recomendaria dar uma nova chance para o D&D 4ª edição. O jogo pode vir a ganhar bastante tendo a tela do computador como aliado. Além disso, muitos jogadores voltaram a usar miniaturas pela possibilidade de até mesmo customizar e imprimir em casa. Pra quem ainda não tem dinheiro ou mesmo acesso a impressoras 3D, deixo o link desse site para criar seus tokens personalizados: http://rolladvantage.com/tokenstamp/ 

Entre outras coisas que podem ser úteis para os amantes da 4ª edição:

Character Builder (funcional, basta baixar e instalar no PC)

Criar e editar seus Power Cards

A saber, fiz uma resenha da incrível mega-campanha Madness at Gardmore Abbey aqui no blog. Em breve, falarei sobre Dark Sun e Neverwinter Campaign Setting, ambos, cenários incríveis que foram lançados para a 4ª edição.

Bons jogos e bom ano novo para todos!